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February 26th, 2015

A realidade do empreendedorismo na favela

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Estimated reading time: 5 minutes

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A realidade do empreendedorismo na favela

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Sabe-se que nas favelas concentram-se diversos arranjos econômicos e sociais informais. Neste post, Isabella Nunes Pereira apresenta os resultados de sua pesquisa sobre o empreendedorismo conduzido por moradores da Rocinha, a maior favela do Rio de Janeiro. Ela acha que, neste contexto de elevado risco, os empresários são orientados pelas ações, ao invés de orientados a obtenção de metas, desafiando o entendimento do empreendedorismo com base no tradicional pensamento econômico.

Apesar da presença de uma consolidada atividade empresarial em favelas do Rio de Janeiro,o debate articulado ao campo do empreendedorismo permanece pouco explorado. O que sabemos sobre como, efetivamente, esses empreendedores iniciam seus negócios? Qual será a lógica que orienta suas ações?

Este post propõe uma discussão sobre a prática empreendedora na Rocinha, maior favela do Rio de Janeiro, através da análise de entrevistas em profundidade,na linha metodológica da escuta proposta por Heinz Kimmerle (2001), dando voz a personagens da vida real.  Ela revela um modo particular de empreender não orientado a metas, desafiando a prática empreendedora baseada no pensando econômico tradicional.

A pesquisa de campo mostrou uma preferência por um tipo de lógica distante daquela normalmente reconhecida como “business”. Enquanto as orientações tradicionais promovem a importância da lógica preditiva apoiada no planejamento, partindo de objetivos pré-definidos, baseados em um plano de negócio bem estruturado, a prática empreendedora observada na Rocinha me mostrou justamente o oposto. Imersos em um ambiente de elevada incerteza, os empreendedores na Rocinha se mostram orientados a ação. Ao invés de planejamento, a prática empreendedora inicia-se a partir dos recursos básicos (quem eu sou, o que eu sei, quem eu conheço).  Adicionalmente, estes empreendedores encaram as contingências, não como desvio de percurso, mas como parte do processo, em que os movimentos de ajuste fazem parte do aprendizado estratégico.

Não é difícil encontrar exemplos reais para ilustrar esta lógica empreendedora. A dona de uma LAN house de sucesso na Rocinha, usou os recursos que recebeu de uma indenização referente ao seu emprego anterior para efetuar a compra do seu negócio. Nunca na vida tinha tido R$ 4 mil nas mãos. Ela era empregada da LAN house quando o antigo dono decidiu vender o negócio. Apesar de não ter experiência e jamais ter planejado ser empreendedora, ela decidiu comprar o negócio:

Algumas coisas eu planejo, mas acabo modificando. Planejei de uma forma, acabo fazendo de outra. Mas muita coisa eu faço sem planejar. Como se fosse um tiro no escuro. Eu acho que a vida é assim, arriscando para ver se consegue alguma coisa…

Risco é um fator central na vida de pessoas que vivem em áreas vulneráveis, tais como as favelas. O caso da dona de um quiosque de comida baiana é um pouco mais dramático. Sua prática empreendedora iniciou com sua habilidade para cozinhar, mas ela precisou da autorização do “chefe do tráfico” para estabelecer seu negócio, e não tinha um plano bem elaborado.

Quando comecei com o quiosque, eu fui à Associação de Moradores e ninguém podia autorizar. Não consegui, de jeito nenhum, em lugar nenhum, a autorização. Foi quando partimos para outros meios, né? E ai deixaram…E três dias depois que já estava tudo certo, depois que o cara deixou, o cara morreu. Eu vi na televisão. Eu gelei, parecia que tinha morrido meu parente. Então apareceu um novo “chefe do tráfico”.  Eu tomei coragem e fui falar com o cara. Não tinha nada a perder mesmo…

A prática empreendedora observada na Rocinha mostrou muita aderência às conclusões da pesquisa conduzida por Saras Sarasvathy, para o estágio inicial de um empreendimento, considerando ambientes de alta incerteza e risco. Dentro da contribuição teórica que se dedica ao campo do empreendedorismo, Sarasvathy desenvolve uma teoria, apoiada em sua pesquisa empírica sobre a lógica que orienta a prática de empreendedores de sucesso. Em seu artigo de 2001, Sarasvathy define dois processos distintos de empreender, que ela denominou de Causation e Effectuation: i) o primeiro começa com a definição de uma meta pré-definida e se concentra na seleção de diferentes recursos capazes de atingir essa meta ii) o segundo, parte do conjunto de recursos básicos disponíveis,  aqueles que se pode controlar,  e orienta-se  para a geração de resultados possíveis.

Sarasvathy afirma que a excelência empreendedora é em grande parte baseada não na mera causalidade, mas sim na lógica “efeitual” (numa aproximação do sentido de gerar efeitos através da ação).  Com isso a autora sustenta que a tão perseguida racionalidade ilimitada, característica do pensamento econômico tradicional, não faz sentido para conceber a atividade empreendedora. Esse ponto torna-se ainda mais crítico se considerarmos que a orientação empreendedora tradicional, prescrita pelos atores institucionais envolvidos, parece ter base na lógica tradicional do pensamento econômico (causation), que encontra pouca ou nenhuma ressonância nos casos estudados (effectuation) (Nunes-Pereira et al, próxima publicação).

Do informal para o formal?

Crédito: Memórias do PAC (CC BY-NC-SA 2.0).
Crédito: Memórias do PAC (CC BY-NC-SA 2.0).

Os debates contemporâneos a respeito das novas iniciativas empreendedoras observadas nas favelas têm forte viés econômico. Economia subterrânea, invisível, clandestina, oculta, não observável são designações que tradicionalmente encontramos no campo da economia para se referir à economia não formal. Em geral, na abordagem estritamente econômica, prevalece o enfoque da informalidade como um entrave a ser combatido pelo avanço das “forças” de mercado. Nesse sentido, a economia da favela sofre, desde sua origem, o estigma do preconceito e da marginalização. Tratados como espaços marcados pela precariedade, na maioria das vezes ignoram-se as normas próprias de organização econômica local. O conhecimento das estratégias internas pode ampliar as oportunidades, muitas vezes invisíveis, sobretudo para jovens de favela, afetados por empregos de baixa qualidade e por barreiras do mercado de trabalho.

A constatação na Rocinha de uma lógica de comportamento distante daquele tido como empreendedor pelas normas institucionais estabelecidas pode ter implicações relevantes para as políticas públicas que, com frequência, negligenciam o enraizamento como elemento crítico de sucesso dos processos empreendedores localizados em favelas. Se esse comportamento também se confirmar em outros casos além Rocinha, é razoável acreditar que seria um desperdício de recursos tentar impor uma fórmula geral de “melhores práticas” para o sucesso no empreendedorismo nas favelas “pacificadas” do Rio de Janeiro.

 

Referências
Kimmerle, H. (2001). “Das Verstehen fremder Kulturen und die interkulturelle philosophische Praxis”, In: Verstehen und Verständigung. Ethnologie, Xenologie, interkulturelle Philosophie, edited by Wolfdietrich Schmied-Kowarzik. Königshausen & Neumann Verlag, Würzburg.
Nunes-Pereira, I., & Bartholo, R. (2015). Entrepreneurship in Rocinha: a non goal-driven activity.  In La Rovere, R.L., Ozório, L.M., & Melo, L.J., Entrepreneurship In Brics: Policy And Research To Support Entrepreneurs (p.163-178). Springer-Verlag
Nunes-Pereira, I., Silva, E. R., & Bartholo, R. (próxima publicação). “Official Policies for Entrepreneurship Training in Favela da Rocinha, Rio de Janeiro: a Critical Approach”. Submitted to the Latin American Research Review.
Nunes-Pereira, I. (2014). “Efeituação Situada”: Redes e Empreendedorismo na Rocinha. Tese de doutorado – COPPE/UFRJ.
Sarasvathy, S. D. (2001). “Causation and Effectuation: Toward a theoretical shift from economic inevitability to entrepreneurial contingency”. Academy of Management Review, 262: 243-288.

Crédito da imagem em destaque: Memórias do PAC (CC BY-NC-SA 2.0).

Sobre a Autora
Isabella Nunes Pereira é economista, possui Mestrado e Doutorado em Engenharia de Produção pela COPPE/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente trabalha como pesquisadora no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no qual coordena os indicadores da Estatística de Empreendedorismo, uma iniciativa pioneira para criar, organizar  e harmonizar uma base de dados no Sistema Nacional de Estatísticas Econômicas.


Os pontos de vista e as opiniões expressas neste post são de exclusiva responsabilidade do autor e não representam as do Blog Favelas@LSE nem da LSE. 

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